A recente onda de frio que atingiu o Brasil, e a divulgação, no dia 9 de Agosto de 2021, da primeira parte do sexto relatório do IPCC – o painel intergovernamental sobre mudanças climáticas – atraíram as atenções para o atual estado de emergência climática que ameaça o futuro do planeta. Contudo, a implementação de ações efetivas para a mitigação do problema está ameaçada devido à grande profusão de desinformação a respeito do assunto, afetando consideravelmente o posicionamento de governos e pessoas em geral no que diz respeito ao tema.
O termo “negacionismo” começou a aparecer com frequência na mídia e nas redes sociais durante a pandemia de covid-19 referindo-se à propagação de teses “alternativas”, sem o devido suporte das evidências científicas. Já os defensores dessas teses, em geral, se colocam como pessoas perseguidas por defenderem uma visão de mundo que está em desacordo com o que é pregado pelo mainstream acadêmico, tais como “paladinos” em uma cruzada para revelar ao público uma suposta verdade suprimida por conspirações e poderes ocultos.
Como muitos já devem saber, o termo já existia desde muito antes da pandemia, sendo usado em vários contextos. Sua origem é provavelmente francesa – négationnisme – tendo sido empregado pela primeira vez em meados do Séc. XX para se referir ao movimento de negação do Holocausto. Mas o que torna uma narrativa “negacionista”? Como podemos assegurar que uma postura dita negacionista não seria, na realidade, uma visão original a respeito de um assunto, que pode até ser verdadeira?
No que diz respeito às mudanças climáticas, existem ao menos quatro grandes bases de dados sobre as temperaturas globais registradas nas últimas décadas. No Reino Unido temos o Met Office Hadley Centre, e nos EUA temos os dados da NASA, do NOAA e da Universidade de Berkeley. Todas estas bases de dados mostram claramente o aumento da temperatura média global desde o início do século XX. Trata-se de uma conclusão inequívoca e amplamente aceita pela comunidade científica internacional.
Naturalmente, sempre houve o interesse, por parte da ciência, em se buscar uma explicação para estas observações. Os modelos climáticos modernos consideram uma série de fatores: atividade solar, vulcões, ciclos naturais diversos… Porém, um fator importante sem os quais não é possível reproduzir os resultados observados é o acréscimo de gases de efeito estufa na atmosfera da Terra decorrente da atividade humana.
Apesar do consenso por parte da comunidade científica, existe uma forte campanha de desinformação a respeito do assunto, uma vez que as soluções propostas para o problema conflitam diretamente com a interesses políticos e econômicos. Narrativas baseadas em teorias conspiratórias parecem não levar em conta que as principais bases de dados sobre as temperaturas globais estão nos EUA, país que possui grande parte de sua economia baseada nos combustíveis fósseis (sendo duas delas diretamente ligadas ao governo).
O caso do projeto Berkeley Earth é ainda mais interessante: a maior base de dados até então, foi construída com a ajuda financeira da indústria dos combustíveis fósseis, com o intuito de verificar se as conclusões das outras fontes eram verdadeiras. Os resultados obtidos apenas fortaleceram a constatação da realidade: o planeta está aquecendo com uma rapidez considerável quando comparada a outras mudanças devido a fatores naturais. O físico Richard A. Muller , Coordenador do projeto, que era inicialmente cético quanto ao aquecimento global, admitiu a tendência de aumento da temperatura do planeta diante dos dado obtidos.
Um mundo de extremos.
Ao contrário do que muitos possam imaginar, a onda de frio que atingiu o Brasil em 2021 não conflita com a constatação de que o mundo está aquecendo. A ideia de “Aquecimento Global” se refere a uma tendência de aumento da temperatura média de todo o planeta, ou seja, não basta você olhar apenas para o lugar onde você mora, e em uma determinada época, é preciso considerar o que acontece com a Terra como um todo.
Enquanto nevava no Sul do país – coisa que já acontecia antes – uma forte onda de calor assolava o hemisfério norte, quebrando vários recordes de temperatura. O aquecimento é o principal gatilho de mudanças mais complexas no clima do planeta, que devem trazer tempestades mais fortes, secas mais intensas e outras consequências que irão afetar negativamente tanto os ecossistemas quanto as sociedades humanas.
Karina Lima é mestre em Geografia e estudante de doutorado em Climatologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Empenhada na divulgação científica no Twitter e no YouTube, ela explica que “apesar de parecer contraintuitivo que um planeta mais quente apresente também alguns fenômenos extremos de frio, eles podem sim acontecer. Mas é importante ressaltar que existe um aumento na temperatura média da Terra e eventos de calor devem ser mais frequentes.”
Sobre o sexto relatório do IPCC ela diz que “Essa primeira parte do relatório já nos proporcionou grande quantidade de dados científicos e análises bem embasadas que nos servirão de guia. Sabemos que o homem está aquecendo a atmosfera, oceano e superfície terrestre e que esse aquecimento está levando a um aumento dos eventos extremos, por exemplo.”
Professor de Física da Universidade Estadual do Ceará (UECE), e um dos maiores especialistas em clima no Brasil, Alexandre Costa se dedica a combater o negacionismo climático através de seu canal no YouTube, “O Que Você Faria se Soubesse o Que Eu Sei?” e perfis com o mesmo nome nas redes sociais. Ele explica que as informações contidas no relatório não são nenhuma surpresa para quem é da área, “mas nós temos percebido, de um relatório para o outro, uma elevação no tom do alerta”.
O que é “negacionismo” afinal?
Não é exagero dizer que existe um verdadeiro arsenal de argumentos à disposição daqueles que buscam negar a realidade do aquecimento global causado pela atividade humana. Esses argumentos vivem aparecendo na mídia e nos territórios mais conspiracionistas das redes sociais e da internet em geral, e podem ser desmontados com um mínimo de boa vontade para pesquisar. Uma boa fonte de informações para lidar com eles é o site www.skepticalscience.com, inteiramente dedicado ao assunto (a maior parte do material está em inglês, mas existe uma boa parte traduzida para o português e outras línguas).
Um dos argumentos usados, por exemplo, afirma que as emissões de CO2 de origem humana são apenas uma pequena fração – menos de 4% – das emissões totais de CO2 quando consideramos as emissões naturais. Como nós, seres humanos, poderíamos estar afetando o clima de nosso planeta emitindo esse gás estufa em quantidades tão pequenas quando comparadas às emissões por causas naturais (respiração, decomposição, vulcões, incêndios naturais…)?
De fato, a quantidade de CO2 liberada pelos sistemas naturais é muito maior do que aquela liberada pela atividade humana, porém, o que os negadores não contam é que os sistemas naturais também absorvem enormes quantidades de CO2 (pela fotossíntese, por exemplo). Assim, quando liberamos mais desse gás na atmosfera, interferimos no balanço natural do ciclo do CO2, e a concentração aumenta.
Para ilustrar, imagine uma pia com uma torneira e um ralo, se a vazão da torneira estiver ajustada com a vazão do ralo, o nível da água na pia não muda, pois a água que chega compensa a que vai embora. Porém, se alguém abrir um pouquinho mais a torneira, esse equilíbrio é desfeito, e o nível da água começa a subir. É exatamente o mesmo que ocorre com o ciclo do carbono, a quantidade que entra supera a que sai, e a concentração aumenta ao longo dos anos.
Várias linhas de evidência apontam para o fato de que esse aumento se deve à atividade humana: o aumento da acidez dos oceanos (que indica que eles estão absorvendo mais CO2 do que estão emitindo), a proporção de isótopos indicando uma maior presença do carbono de origem fóssil na atmosfera, o ligeiro decréscimo na concentração de O2, indicando que este gás deve estar sendo consumido em processos de combustão… Enfim, praticamente não restam dúvidas sobre nossa contribuição para o processo.
Logo, aqueles que lançam mão desse argumento para apoiar a narrativa de que as mudanças climáticas seriam uma “grande farsa” mostram apenas uma parte da história – as emissões naturais são muito maiores que as humanas – ignorando informações relevantes para uma compreensão adequada do assunto – os sistemas naturais também absorvem CO2… – ou seja, estão negando fatos, e por isso, são “negacionistas”. Para sustentar a narrativa, eles precisam ignorar ou distorcer parte da história, sendo tal narrativa, por definição, uma forma de “negacionismo”.
Não nos deixemos enganar.
É evidente que uma pessoa sem o devido conhecimento do assunto teria dificuldades em reconhecer um argumento negacionista. Devemos sempre desconfiar de discursos com viés conspiracionista, questionando autoridades técnicas e científicas, pois ainda que a ciência e as mídias tradicionais possam cometer erros, essas fontes têm muito mais compromisso com a realidade do que qualquer conteúdo viral que brote na internet, ainda que o autor do conteúdo seja algum “cientista renomado”, ou coisa do tipo…
De fato, os principais propagadores do discurso negacionista costumam ter diploma na área, alguns até têm doutorado e artigos publicados. Porém, o currículo deles costuma ficar muito aquém do que se espera, quando comparados aos de outros pesquisadores mais sérios. Como diz o Prof. Alexandre Costa, “todo negacionismo tem um quê de recalque.”
Geralmente, quando expostos a fatos que derrubam suas afirmações, negacionistas irão simplesmente partir pra outra – afinal, existem arsenais de argumentos – nosso conhecimento pode ser limitado, mas a quantidade de formas pelas quais ele pode ser distorcido é praticamente infinita. Muitos dos argumentos negacionistas, inclusive, são contraditórios – por exemplo, dizem que a Terra está esfriando, para depois dizerem que ela se aquece por causas naturais – o objetivo não é construir uma narrativa consistente, mas sim negar uma concepção já estabelecida. E isso não vale apenas para o negacionismo climático.
Justamente por suprimirem aspectos mais complexos do assunto em questão, as narrativas falsas podem ser de mais fácil assimilação pelas pessoas em geral, já o quadro real da situação pode parecer por demais complicado para a grande maioria. Vide a explicação que dei sobre a questão das emissões de CO2, o argumento inicial é claramente mais palatável do que sua refutação.
Alguém comprometido com a realidade precisa constantemente buscar embasamento para aquilo que afirma, e nem sempre é possível verificar o que um negacionista diz de forma imediata. Logo, se engana quem acha que debates cara a cara – como os que ocorrem em plenários ou tribunais, por exemplo – seriam a melhor maneira de se revelar a “Verdade” para o público geral. Isso apenas ajuda a confundir os espectadores, passando a ideia equivocada de que especialistas estariam “divididos”, havendo por tanto “dois lados”, quando na verdade um desses lados não passa de um amontoado de falácias e mentiras.
Enfim, Negacionistas não são “novos Galileus”. Negacionistas negam fatos, distorcem informações, apresentando-as de forma incompleta ou até mesmo errada, visando o público leigo, não especializado. Apelam para as emoções, usando narrativas conspiracionistas (que podem ser usadas para defender qualquer coisa, desde curandeirismo à Terra Plana), e ignoram dados concretos que vão de encontro direto ao discurso que propagam.
A Ciência, por sua vez, não se faz com opiniões, cientistas buscam uma realidade objetiva, que vale tanto para mim como para você, assim como também vale para nossos filhos, netos e os que virão depois. Não devemos permitir que mentiras e meias verdades pautem o debate acerca do nosso futuro e do mundo no qual as próximas gerações irão viver.